sábado, 21 de fevereiro de 2015

Ida mexe em feridas abertas na Polônia



O Cinema da Fundação começa o ano, hoje, com a exibição de um filme que tem o significado de uma profissão de fé. O longa­-metragem Ida, de Pawel Pawlikowski, pede um tempo extra de contemplação para ser melhor apreciado. Quase como um ritual religioso, o filme se constrói lentamente diante dos olhos do espectador. De certa maneira, a experiência religiosa da noviça Anna (Agata Trzebuchowska), que descobrirá um pouco depois se chamar Ida e ser judia, mescla-­se a de quem está em frente à tela do cinema.

Forma e conteúdo estão inextricavelmente ligados no quinto longa de ficção de Pawlikowski. Mas esse, sem dúvida, é de longe o filme mais impactante de sua carreira. Até então trabalhando na Inglaterra, pela primeira vez o cineasta volta à Polônia natal. Com olhos de historiador, ele revolve o passado de seu país para mexer em feridas sempre abertas: o colaboracionismo nazista e o assassinato dos judeus durante a Segunda Guerra Mundial e os expurgos stalinistas no começo da década de 1960.

Mas não é história com H maiúsculo que interessa ao diretor anglo-­polonês. Ao contrário, ele entra pelas portas dos fundos da história para retratar o pedaço de um passado enterrado sob várias camadas de mentiras. É mais ou menos em busca de uma revelação, escondida de uma maneira trágica, que vemos emergir uma verdade com a força do inaceitável: a noviça Anna descobre, a poucos dias de se tornar freira, que é judia e se chama Ida.

Ela ouve, impassível, que é filha de judeus mortos por pessoas conhecidas do lugar onde moravam. Aparentemente, muitos poloneses católicos se aproveitaram da fragilidade dos judeus, já condenados pelo nazismo, e os matavam. Além de pilhar os pertences deles, ficavam com suas propriedades. Com impassibilidade de quem viveu sempre no claustro, Ida não parece se abalar com a história contada por Wanda (Agata Kulesza), a tia de quem nunca soubera da existência.

Longe do convento, Ida apenas observa como a tia se entrega a uma vida que ela jamais terá. Wanda é uma ex-­procuradora do governo encarregada de julgar colaboracionistas. Ficaremos sabendo depois que, aparentemente, deve ter caído em desgraça, porque passa os dias em bares, bebendo e indo para a cama com o primeiro homem que aparecer. Na primeira cena em que ela surge, o retrato que Pawlikowski faz dela é o de uma prostituta.

A partir do choque de contradições e dualidades o cineasta irá aproximar Wanda e Ida quando elas empreendem uma viagem à pequena cidade onde os pais da noviça viveram. Chegam até à casa da família que, inicialmente, escondeu o casal e os filhos dos nazistas para depois os assassinarem e ficarem com suas terras. Wanda e Ida conseguem resgatar os ossos dos familiares em uma floresta e enterrá-­los em um cemitério.

Ao mesmo tempo em que ajusta as contas com um passado tão sombrio, Ida ainda precisa manter a fé e escapar da influência mundana de Wanda, que a todo instante pede para que ela reconsidere os votos de castidade e se entregue à vida de prazeres. Como uma prova de conhecimento de seu corpo, Ida terá um encontro com um músico de jazz, mas isso não mudará sua decisão de permanecer fiel à vida que conhece. Pawlilkowski é claro em apontar que não acredita em determinismos históricos.

Econômico nos diálogos, o cineasta narra seu filme de uma maneira fora do comum. Em primeiro lugar, escolheu um formato de imagem que remonta ao início do cinema, como também filmou em preto e branco. Com um predomínio do branco sobre o preto, a imagem elaborada pelos diretores de fotografia Ryszard Lenczewski e Lukasz Zal é de uma beleza deslumbrante. Em algumas cenas, especialmente no abertura do filme, Pawlikowsi relembra Cinzas e diamantes (1958), de Andrzej Wajda, que também se passa na Polônia durante a ocupação alemã.

Mas a grande influência de Pawlikowski parece de vir de uma crença ainda mais profunda. Com uma composição estática e rigorosa, apoiada muitas vezes em closes, Ida se assemelha mais ao clássico A paixão de Joana d´Arc, do dinamarquês Carl Theodor Dreyer, realizado em 1927. Com recortes abstratos, os planos adquirem uma beleza rara pouco vista no cinema atual.

Certamente por isso que Ida se tornou um dos filmes mais premiados e incensados dos últimos dois anos em festivais internacionais. Já está na lista dos nove filmes que concorrem às cinco vagas do Oscar de Melhor Filme Estrangeiro este ano, representando a Polônia. Além disso, desde o ano retrasado participou de 45 festivais e venceu inúmeros prêmios de Melhor Filme, entre eles London Film Festival, European Film Awards, Los Angeles Film Critics Association Awards e Polish Film Awards. (Publicado originalmente no Jornal do Commercio no dia 2 de janeiro de 2015)

Nenhum comentário:

Postar um comentário